domingo, 19 de agosto de 2007

Para o meu Amigo G.


Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Fernando Pessoa, Poesias de Álvaro de Campos

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Liberté


Liberté

Sur mes cahiers d'écolier
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable de neige
J'écris ton nom

Sur les pages lues
Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre
J'écris ton nom

Sur les images dorées
Sur les armes des guerriers
Sur la couronne des rois
J'écris ton nom

Sur la jungle et le désert
Sur les nids sur les genêts
Sur l'écho de mon enfance
J'écris ton nom

Sur tous mes chiffons d'azur
Sur l'étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante
J'écris ton nom

Sur les champs sur l'horizon
Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres
J'écris ton nom

Sur chaque bouffées d'aurore
Sur la mer sur les bateaux
Sur la montagne démente
J'écris ton nom

Sur la mousse des nuages
Sur les sueurs de l'orages
Sur la pluie épaisse et fade
J'écris ton nom

Sur les formes scintillantes
Sur les cloches des couleurs
Sur la vérité physique
J'écris ton nom

Sur les sentiers éveillés
Sur les routes déployées
Sur les places qui débordent
J'écris ton nom

Sur la lampe qui s'allume
Sur la lampe qui s'éteint
Sur mes raisons réunies
J'écris ton nom

Sur le fruit coupé en deux
Du miroir et de ma chambre
Sur mon lit coquille vide
J'écris ton nom

Sur mon chien gourmand et tendre
Sur ses oreilles dressées
Sur sa patte maladroite
J'écris ton nom

Sur le tremplin de ma porte
Sur les objets familiers
Sur le flot du feu béni
J'écris ton nom

Sur toute chair accordée
Sur le front de mes amis
Sur chaque main qui se tend
J'écris ton nom

Sur la vitre des surprises
Sur les lèvres attendries
Bien au-dessus du silence
J'écris ton nom

Sur mes refuges détruits
Sur mes phares écroulés
Sur les murs de mon ennui
J'écris ton nom

Sur l'absence sans désir
Sur la solitude nue
Sur les marches de la mort
J'écris ton nom

Sur la santé revenue
Sur le risque disparu
Sur l'espoir sans souvenir
J'écris ton nom

Et par le pouvoir d'un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer

Liberté.

Paul Eluard, Poésies et Vérités, 1942

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Liberdade


Ai que prazer
Não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
Como tem tempo, não tem pressa...


Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.


Quanto melhor é quando há bruma
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!


Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.


E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...


Fernando Pessoa - Poesias Inéditas

domingo, 10 de junho de 2007

Telejornal


Telejornal


Informam-me, neste momento: os corcéis cor de laranja

Romperam os cercados e cavalgam os horizontes.

Atenção, estúdio! A locutora desvia a franja,

E sorri: – Também foram avistados alguns bisontes.


Prossegue: – Arco-íris cinzentos – diz, enquanto esbanja

Simpatia – protestam calados, dizem várias fontes.

(Pausa). Prevê-se que esta manifestação abranja

Estepes, serras, selvas, vales, tundras, savanas e montes.


­– Economia: as taxas de juro foram detidas

Por atentado à Esperança que, abalada, se tornou vã.

– E agora o desporto: foram há pouco batidas


As marcas que tinham dado o recorde à campeã

Do desespero, da penúria e das causas perdidas.

Assim vai o nosso mundo! Boa noite! Até amanhã!


sexta-feira, 8 de junho de 2007

Inanição

O vento suprime os insterstícios dos nadas deste mundo. Solidário, submeto-me às sevícias de todos os paraísos e haréns e, sem resistir, deixo-me tomar por volutas prenhes de hedonismo e por sendas intransponíveis.


Guio meus passos por expectativas inesperadas. Sigo. Alguns escolhos. Insisto. Tombo. Ergo-me. Continuo. Difícil, o caminho. Não desisto. Prossigo. Tropegamente, porém. E avanço. E avanço.


Para onde? Porquê? Com que fim?


E se o fim não é o que almejo? E se a recompensa não merece o esforço? E se o desfecho se transforma em desilusão?


Placidamente, sento-me naquela pedra a que chamo irmã, e choro os meus medos.


quarta-feira, 6 de junho de 2007

Pelo sonho é que vamos...


Pelo Sonho é que vamos,
Comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos,
Basta a esperança naquilo
Que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
Com a mesma alegria,
Ao que desconhecemos
E ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

– Partimos. Vamos. Somos.


Sebastião da Gama

domingo, 3 de junho de 2007

Reflexo


Reflexo

Veredas intermitentes de maus sonhos e ocasos
Desembocam em marés de suor e olheiras fundas.
No espelho risca-se o desalento! Negações rotundas,
As que gravo em ónix e outras pedras raras, de olhos rasos.

Índole perversa, maus fígados, tumores, acasos,
Despeito, as glórias, podres credos, intenções segundas,
Íntegros senãos, roucas evasivas, carnes imundas
Infestam-me! Em tempo algum correu sangue nos meus vasos!

E a indolência é tal, tanta a estupefacção, a algidez tamanha
Que retorno ao enxergão. Placentas, colibris e dores
Assaltam-me. É o outro eu, o outro ninguém que ganha.

Reagir? Nunca! O universo e eu somos bons actores
E se, visceralmente, a sofreguidão me acompanha,
Recuso o Caos e a Ordem e procuro os meus arredores.

sábado, 2 de junho de 2007

Daquilo que eu sei...

Duccio di Buoninsegna (c. 1255-1319), Pilatos Lavando as Mãos
Museo dell'Opera del Duomo, Siena


Daquilo que eu sei

Daquilo que eu sei
Nem tudo me deu clareza
Nem tudo foi permitido

Nem tudo me deu certeza

Daquilo que eu sei

Nem tudo foi proibido

Nem tudo me foi possível


Nem tudo foi concebido

Não fechei os olhos

Não tapei os ouvidos

Cheirei, toquei, provei

Ah! Eu usei todos os sentidos


Só não lavei as mãos
E é por isso que eu me sinto

Cada vez mais limpo
Cada vez mais limpo
Cada vez mais...

Ivan Lins


quinta-feira, 31 de maio de 2007

Depois do caos, o princípio


Depois do caos, o princípio

Erram agoiros e bezerros nos ciprestes!

Atónito, forjo borboletas e urdo
Tules! Delirantemente, em estupor absurdo!

Crepitam bucéfalos, pêssegos e pestes!


Gorgolejam sílfides e gáveas! Agrestes,

Dançam bússolas e horizontes, em tom surdo!

Envoltas em desassossego e linho burdo,

Virgens e penúrias inventam suas vestes!


Ainda estou! Ardem fonemas e oceanos

Em lume brando! Profetas e outros enganos

Esvaem-se em plasmas e doutas incongruências!

O que é o Céu? O que é o Longe? E o Destino?
A Luz, por fim! De rastos, quase clandestino,

Invoco o adeus e lembro perdas e ausências!

Homenagem

A Mulher. Quinhentos anos de pintura ocidental.
Belíssimo.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

terça-feira, 29 de maio de 2007

Soneto Satânico


Soneto Satânico

Belzebu, sem cuidado, abriu um dia
As portas do inferno às mulheres
E logo se arrependeu. Já não ia

Conseguir desfrutar dos seus prazeres.

Benzeu-se, até! Debalde! A gritaria
Era tal que todos os afazeres
Foram descuidados e, ironia,
Ouviu, em si, uma voz: Não desesperes!

Tridente em punho, olhos faiscantes,
Possesso com as novas habitantes,
Expulsou-as dali e correu a aldraba!

Logo uma, afoita, tomou o comando
De todas as outras e, blasfemando,
Instituiu "O Inferno da Diabba"!


segunda-feira, 28 de maio de 2007

Pedra Filosofal


Pedra Filosofal

Eles não sabem que o sonho
Contraponto, sinfonia,
É uma constante da vida
Máscara grega, magia,
Tão concreta e definida
Que é retorta de alquimista,
Como outra coisa qualquer,
Mapa do mundo distante,
Como esta pedra cinzenta
Rosa-dos-ventos, Infante,
Em que me sento e descanso,
Caravela quinhentista,
Como este ribeiro manso
Que é Cabo da Boa Esperança,
Em serenos sobressaltos,
Ouro, canela, marfim,
Como estes pinheiros altos
Florete de espadachim,
Que em verde e oiro se agitam,
Bastidor, passo de dança,
como estas aves que gritam
Colombina e Arlequim,
em bebedeiras de azul.
Passarola voadora,


Pára-raios, locomotiva,
Eles não sabem que o sonho
Barco de proa festiva,
É vinho, é espuma, é fermento,
Alto-forno, geradora,
Bichinho álacre e sedento,
Cisão do átomo, radar,
De focinho pontiagudo,
Ultra-som, televisão,
Que fossa através de tudo
Desembarque em foguetão
Num perpétuo movimento.
Na superfície lunar.



Eles não sabem que o sonho
Eles não sabem, nem sonham
É tela, é cor, é pincel,
Que o sonho comanda a vida,
Base, fuste, capitel,
Que sempre que um homem sonha
Arco em ogiva, vitral,
O mundo pula e avança
Pináculo de catedral,
Como bola colorida


Entre as mãos de uma criança.



António Gedeão, Movimento Perpétuo, 1956

domingo, 27 de maio de 2007

Lembro-me bem do seu olhar


Lembro-me bem do seu olhar.
Ele atravessa ainda a minha alma,
Como um risco de fogo na noite.
Lembro-me bem do seu olhar. O resto...
Sim, o resto parece-se apenas com a vida.


Ontem passei nas ruas como qualquer pessoa.
Olhei para as montras despreocupadamente
E não encontrei amigos com quem falar.
De repente vi que estava triste, mortalmente triste,
Tão triste que me pareceu que me seria impossível viver amanhã,
Não porque morresse ou me matasse,
Mas porque seria impossível viver amanhã e mais nada.


Fumo, sonho, recostado na poltrona.
Dói-me viver como uma posição incómoda.
Deve haver ilhas lá para o sul das coisas
Onde sofrer seja uma coisa mais suave,
Onde viver custe menos ao pensamento,
E onde a gente possa fechar os olhos e adormecer ao sol
E acordar sem ter que pensar nas responsabilidades sociais
Nem no dia do mês ou da semana que é hoje.


Abrigo no peito, como a um inimigo que temo ofender,
Um coração exageradamente espontâneo,
Que sente tudo o que eu sonho como se fosse real,
Que bate com o pé a melodia das canções que o meu pensamento canta,
Canções tristes, como as ruas estreitas quando chove."


Fernando Pessoa - Poesias Inéditas

Carpe Noctem


Carpe Noctem

Implodem camiões e estrelas... É o deserto!

Nas cavernas límpidas esbracejam aranhas

Que querem escapulir-se pelo céu entreaberto,

Envoltas em soluços e penas tamanhas


Que a terra treme! Descrente, sinto um aperto!

Sorvo miragens. Escuto luzes. Cavo entranhas!

Sublimo zénites. Aguardo. E, então, converto

As histórias de embalar em mélicas sanhas.


Vêm fadas! Salta a carniça e, a poente,

Estanca o vinho e soçobram harpas e flautas.

Resguarda-se a noite, delicada, fremente.


Cai, por fim. Jasão convoca os Argonautas.

Anúbis recolhe-se em Néftis, indolente.

Aos braços de Nix tornam almas incautas.


sábado, 26 de maio de 2007

Depoimento


De seguro,
Posso apenas dizer que havia um muro
E que foi contra ele que arremeti
A vida inteira.
Não, nunca o contornei.
Nunca tentei
Ultrapassá-lo de qualquer maneira.

A honra era lutar
Sem esperança de vencer.

E lutei ferozmente noite e dia,

Apesar de saber

Que quanto mais lutava mais perdia

E mais funda sentia
A dor de me perder.

Miguel Torga


terça-feira, 22 de maio de 2007

Poema 20

Van Gogh, The Starry Night - The Museum of Modern Art, New York


Puedo escribir los versos más tristes esta noche.

Escribir, por ejemplo: "La noche esta estrellada,
y tiritan, azules, los astros, a lo lejos".

El viento de la noche gira en el cielo y canta.

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Yo la quise, y a veces ella también me quiso.

En las noches como ésta la tuve entre mis brazos.
La besé tantas veces bajo el cielo infinito.

Ella me quiso, a veces yo también la quería.
Cómo no haber amado sus grandes ojos fijos.

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido.

Oír la noche inmensa, más inmensa sin ella.
Y el verso cae al alma como al pasto el rocío.

Qué importa que mi amor no pudiera guardarla.
La noche está estrellada y ella no está conmigo.

Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.
Mi alma no se contenta con haberla perdido.

Como para acercarla mi mirada la busca.
Mi corazón la busca, y ella no está conmigo.

La misma noche que hace blanquear los mismos árboles.
Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.

Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise.
Mi voz buscaba el viento para tocar su oído.

De otro. Será de otro. Como antes de mis besos.
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.

Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.

Porque en noches como ésta la tuve entre mis brazos,
mi alma no se contenta con haberla perdido.

Aunque éste sea el último dolor que ella me causa,
y éstos sean los últimos versos que yo le escribo.

Pablo Neruda, Veinte Poemas de Amor y Una Canción Desesperada


Sem valor, sem juízo, sem perdão!

Sem valor, sem juízo, sem perdão!


Alvarás decrépitos e juras de amor ditam mortes.

Suprimem-se dores e escoiceiam avencas pudibundas.

Infernizam-se em doces de mel e ovos os mais fortes.

Recolhem-se em seus eus as mariposas, meditabundas.


Castas cortesãs, abadessas vis, príncipes consortes,

Infames nobres, outros honestos, rainhas corcundas

Têm assento em miríades de funestas cortes,

Girândolas de gentes gelatinosas e imundas.


Escolhos persigo, e desnorteio ante o mar seráfico,

Supremo ser, sério e senil, de carácter biográfico,

Em que submerjo, enrolado em alísios e cetim.


Longe, em tropel, rinocerontes embalam suas crias

Enquanto marialvas e mafiosos contam os dias

De glória. Não obstante, são dilacerados. Enfim...


segunda-feira, 21 de maio de 2007

Em mim estou, de mim parto


Em mim estou, de mim parto


Blastócitos inermes e canoros

À deriva em úteros poluentes

Afloram, indecisos, entre poros

De voláteis e informes mentes.


Irrompem, então, átomos sonoros

Exultando e corroendo gentes

Cobardemente destemido, ignoro-os

E preparo o refúgio, entrementes.


Zoando, insectos helicoidais

Impõem-se em togas e casulas.

Genuflicto, e vislumbro entre os varais


Quatro belicosas e doces mulas

Que em ademanes secos e brutais

Esfacelam alforrecas e medulas.


domingo, 20 de maio de 2007

Hossana!


Hossana

Gemebundos, os poentes agnósticos solidificam-se em entremeios de veias desossadas.

Hossana!

Arroios pérfidos de pérolas periclitantes jazem imersos em discussões ímpias sobre marés roxas de vinho inerte e mal pisado.


Hossana!


Rouxinóis cancerosos estupidificam recolhidos em mosteiros de rendas baratas e salvaguardam a sua herança desbragada e veementemente.


Hossana!


Deslumbram-se, breves, sóis dementes, acariciando epidermes talhadas em oiro desalentado e em groselhas fulgurantes.


Hossana!


Irrompes, Diva, de uma lura improvável, e o horizonte distorce-se em pedradas sãs e ignóbeis, como se assim pudesse ser, mesmo quando as buganvílias tecem loas e a maresia se desconcentra.


Hossana! Hossana! Hossana!


sábado, 19 de maio de 2007

Ponte de Almas

Roberto Fabelo - Ninfa


Sofro, Lídia, do medo do destino.

A leve pedra que um momento ergue
As lisas rodas do meu carro, aterra
Meu coração.

Tudo quanto me ameace de mudar-me
Para melhor que seja, odeio e fujo.
Deixem-me os deuses minha vida sempre
Sem renovar

Meus dias, mas que um passe e outro passe
Ficando eu sempre quase o mesmo, indo
Para a velhice como um dia entra
No anoitecer.

Ricardo Reis


Fragmentos para uma estética do desalento

Sublime e desesperançada, a iniquidade e a impotência do que sobreavisando a eternidade se deixa subjugar pela quântica misantrópica de um universo irreflectido em si mesmo e no nada que o evola e que, ainda assim, o integra e valquirianamente o cavalga. O anátema enervante e imenso não é impudico, antes submerso e inviamente deslumbrado. Desconhece-se o ser e liminarmente se aflora o ego monstruoso, em ensaios míticos de unicórnios e sílfides que, operática e hereticamente, se confundem em tempestades estivais de fogos-fátuos e de arrependimentos ténues e inverosímeis. Salvem-se almas pútridas e maçãs ardentes em querosene barato, destilado à custa de privações de putativos sentidos amparados em similares conceitos desbragados e rudes. Roçaguem bestas imundas em damascos puídos e tremeluzentes e em canções servo-croatas, sob incomensuráveis concretos de ternura e de torresmos e soarão, em silêncios imundos e inamovíveis, os olhares antitetânicos e perversos dos que se chicoteiam plácida e acusadoramente com borlas de sânscrito e de alfazema pueril.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

De mim no mundo

Calvo turpius est nuhil comto
(Marcial)

Revolvo-me das e nas entranhas de Gaia, telúrica deusa, que venero por mãe – e por isso lhe obedeço – mas é-me impossível, por abjecta, a ideia de translucidar o que meus lúzios podem, em ínfimo nanossegundo, lobrigar.

Infâmia desmembrada e dissoluta, a daqueles que, Homens de pouca ou de ausente ou inanimada fé, vilipendiam a sua própria cognição e tumultuam, em desnorte plúmbeo, a indesejada inteligência, por esgotos de sabedoria avulsa, pretendendo exaurir-se em volutas de aquiescência servil para com os Deuses e para com os pares.

Esbarrondam-se as almas, prenhes de estultícia e de lucidez, em lagares de urze elevada e de espíritos azedos, esparrinham-se os colegiais humores (e amores) em dúbia nortada aceite perene e, rojando intenções benfazejas e insuportáveis, descontroem serenidades perplexas e ubiquidades diluvianas sempre-vivas.

Subjugando-se aos ignaros apelos da subtil e mourejante lascívia, num nepotismo indemne e estrito, embrutecem – condenados sejam, per omnia secula seculorum – e das entranhas permanentes nada ressuma, nada rescende, nem sequer atavios insones ou enxúndias glabras.

Sede malditos, ó ímpios!

Risu inepto res ineptior nulla est
(Catulo)