quinta-feira, 31 de maio de 2007

Depois do caos, o princípio


Depois do caos, o princípio

Erram agoiros e bezerros nos ciprestes!

Atónito, forjo borboletas e urdo
Tules! Delirantemente, em estupor absurdo!

Crepitam bucéfalos, pêssegos e pestes!


Gorgolejam sílfides e gáveas! Agrestes,

Dançam bússolas e horizontes, em tom surdo!

Envoltas em desassossego e linho burdo,

Virgens e penúrias inventam suas vestes!


Ainda estou! Ardem fonemas e oceanos

Em lume brando! Profetas e outros enganos

Esvaem-se em plasmas e doutas incongruências!

O que é o Céu? O que é o Longe? E o Destino?
A Luz, por fim! De rastos, quase clandestino,

Invoco o adeus e lembro perdas e ausências!

Homenagem

A Mulher. Quinhentos anos de pintura ocidental.
Belíssimo.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

terça-feira, 29 de maio de 2007

Soneto Satânico


Soneto Satânico

Belzebu, sem cuidado, abriu um dia
As portas do inferno às mulheres
E logo se arrependeu. Já não ia

Conseguir desfrutar dos seus prazeres.

Benzeu-se, até! Debalde! A gritaria
Era tal que todos os afazeres
Foram descuidados e, ironia,
Ouviu, em si, uma voz: Não desesperes!

Tridente em punho, olhos faiscantes,
Possesso com as novas habitantes,
Expulsou-as dali e correu a aldraba!

Logo uma, afoita, tomou o comando
De todas as outras e, blasfemando,
Instituiu "O Inferno da Diabba"!


segunda-feira, 28 de maio de 2007

Pedra Filosofal


Pedra Filosofal

Eles não sabem que o sonho
Contraponto, sinfonia,
É uma constante da vida
Máscara grega, magia,
Tão concreta e definida
Que é retorta de alquimista,
Como outra coisa qualquer,
Mapa do mundo distante,
Como esta pedra cinzenta
Rosa-dos-ventos, Infante,
Em que me sento e descanso,
Caravela quinhentista,
Como este ribeiro manso
Que é Cabo da Boa Esperança,
Em serenos sobressaltos,
Ouro, canela, marfim,
Como estes pinheiros altos
Florete de espadachim,
Que em verde e oiro se agitam,
Bastidor, passo de dança,
como estas aves que gritam
Colombina e Arlequim,
em bebedeiras de azul.
Passarola voadora,


Pára-raios, locomotiva,
Eles não sabem que o sonho
Barco de proa festiva,
É vinho, é espuma, é fermento,
Alto-forno, geradora,
Bichinho álacre e sedento,
Cisão do átomo, radar,
De focinho pontiagudo,
Ultra-som, televisão,
Que fossa através de tudo
Desembarque em foguetão
Num perpétuo movimento.
Na superfície lunar.



Eles não sabem que o sonho
Eles não sabem, nem sonham
É tela, é cor, é pincel,
Que o sonho comanda a vida,
Base, fuste, capitel,
Que sempre que um homem sonha
Arco em ogiva, vitral,
O mundo pula e avança
Pináculo de catedral,
Como bola colorida


Entre as mãos de uma criança.



António Gedeão, Movimento Perpétuo, 1956

domingo, 27 de maio de 2007

Lembro-me bem do seu olhar


Lembro-me bem do seu olhar.
Ele atravessa ainda a minha alma,
Como um risco de fogo na noite.
Lembro-me bem do seu olhar. O resto...
Sim, o resto parece-se apenas com a vida.


Ontem passei nas ruas como qualquer pessoa.
Olhei para as montras despreocupadamente
E não encontrei amigos com quem falar.
De repente vi que estava triste, mortalmente triste,
Tão triste que me pareceu que me seria impossível viver amanhã,
Não porque morresse ou me matasse,
Mas porque seria impossível viver amanhã e mais nada.


Fumo, sonho, recostado na poltrona.
Dói-me viver como uma posição incómoda.
Deve haver ilhas lá para o sul das coisas
Onde sofrer seja uma coisa mais suave,
Onde viver custe menos ao pensamento,
E onde a gente possa fechar os olhos e adormecer ao sol
E acordar sem ter que pensar nas responsabilidades sociais
Nem no dia do mês ou da semana que é hoje.


Abrigo no peito, como a um inimigo que temo ofender,
Um coração exageradamente espontâneo,
Que sente tudo o que eu sonho como se fosse real,
Que bate com o pé a melodia das canções que o meu pensamento canta,
Canções tristes, como as ruas estreitas quando chove."


Fernando Pessoa - Poesias Inéditas

Carpe Noctem


Carpe Noctem

Implodem camiões e estrelas... É o deserto!

Nas cavernas límpidas esbracejam aranhas

Que querem escapulir-se pelo céu entreaberto,

Envoltas em soluços e penas tamanhas


Que a terra treme! Descrente, sinto um aperto!

Sorvo miragens. Escuto luzes. Cavo entranhas!

Sublimo zénites. Aguardo. E, então, converto

As histórias de embalar em mélicas sanhas.


Vêm fadas! Salta a carniça e, a poente,

Estanca o vinho e soçobram harpas e flautas.

Resguarda-se a noite, delicada, fremente.


Cai, por fim. Jasão convoca os Argonautas.

Anúbis recolhe-se em Néftis, indolente.

Aos braços de Nix tornam almas incautas.


sábado, 26 de maio de 2007

Depoimento


De seguro,
Posso apenas dizer que havia um muro
E que foi contra ele que arremeti
A vida inteira.
Não, nunca o contornei.
Nunca tentei
Ultrapassá-lo de qualquer maneira.

A honra era lutar
Sem esperança de vencer.

E lutei ferozmente noite e dia,

Apesar de saber

Que quanto mais lutava mais perdia

E mais funda sentia
A dor de me perder.

Miguel Torga


terça-feira, 22 de maio de 2007

Poema 20

Van Gogh, The Starry Night - The Museum of Modern Art, New York


Puedo escribir los versos más tristes esta noche.

Escribir, por ejemplo: "La noche esta estrellada,
y tiritan, azules, los astros, a lo lejos".

El viento de la noche gira en el cielo y canta.

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Yo la quise, y a veces ella también me quiso.

En las noches como ésta la tuve entre mis brazos.
La besé tantas veces bajo el cielo infinito.

Ella me quiso, a veces yo también la quería.
Cómo no haber amado sus grandes ojos fijos.

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido.

Oír la noche inmensa, más inmensa sin ella.
Y el verso cae al alma como al pasto el rocío.

Qué importa que mi amor no pudiera guardarla.
La noche está estrellada y ella no está conmigo.

Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.
Mi alma no se contenta con haberla perdido.

Como para acercarla mi mirada la busca.
Mi corazón la busca, y ella no está conmigo.

La misma noche que hace blanquear los mismos árboles.
Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.

Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise.
Mi voz buscaba el viento para tocar su oído.

De otro. Será de otro. Como antes de mis besos.
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.

Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.

Porque en noches como ésta la tuve entre mis brazos,
mi alma no se contenta con haberla perdido.

Aunque éste sea el último dolor que ella me causa,
y éstos sean los últimos versos que yo le escribo.

Pablo Neruda, Veinte Poemas de Amor y Una Canción Desesperada


Sem valor, sem juízo, sem perdão!

Sem valor, sem juízo, sem perdão!


Alvarás decrépitos e juras de amor ditam mortes.

Suprimem-se dores e escoiceiam avencas pudibundas.

Infernizam-se em doces de mel e ovos os mais fortes.

Recolhem-se em seus eus as mariposas, meditabundas.


Castas cortesãs, abadessas vis, príncipes consortes,

Infames nobres, outros honestos, rainhas corcundas

Têm assento em miríades de funestas cortes,

Girândolas de gentes gelatinosas e imundas.


Escolhos persigo, e desnorteio ante o mar seráfico,

Supremo ser, sério e senil, de carácter biográfico,

Em que submerjo, enrolado em alísios e cetim.


Longe, em tropel, rinocerontes embalam suas crias

Enquanto marialvas e mafiosos contam os dias

De glória. Não obstante, são dilacerados. Enfim...


segunda-feira, 21 de maio de 2007

Em mim estou, de mim parto


Em mim estou, de mim parto


Blastócitos inermes e canoros

À deriva em úteros poluentes

Afloram, indecisos, entre poros

De voláteis e informes mentes.


Irrompem, então, átomos sonoros

Exultando e corroendo gentes

Cobardemente destemido, ignoro-os

E preparo o refúgio, entrementes.


Zoando, insectos helicoidais

Impõem-se em togas e casulas.

Genuflicto, e vislumbro entre os varais


Quatro belicosas e doces mulas

Que em ademanes secos e brutais

Esfacelam alforrecas e medulas.


domingo, 20 de maio de 2007

Hossana!


Hossana

Gemebundos, os poentes agnósticos solidificam-se em entremeios de veias desossadas.

Hossana!

Arroios pérfidos de pérolas periclitantes jazem imersos em discussões ímpias sobre marés roxas de vinho inerte e mal pisado.


Hossana!


Rouxinóis cancerosos estupidificam recolhidos em mosteiros de rendas baratas e salvaguardam a sua herança desbragada e veementemente.


Hossana!


Deslumbram-se, breves, sóis dementes, acariciando epidermes talhadas em oiro desalentado e em groselhas fulgurantes.


Hossana!


Irrompes, Diva, de uma lura improvável, e o horizonte distorce-se em pedradas sãs e ignóbeis, como se assim pudesse ser, mesmo quando as buganvílias tecem loas e a maresia se desconcentra.


Hossana! Hossana! Hossana!


sábado, 19 de maio de 2007

Ponte de Almas

Roberto Fabelo - Ninfa


Sofro, Lídia, do medo do destino.

A leve pedra que um momento ergue
As lisas rodas do meu carro, aterra
Meu coração.

Tudo quanto me ameace de mudar-me
Para melhor que seja, odeio e fujo.
Deixem-me os deuses minha vida sempre
Sem renovar

Meus dias, mas que um passe e outro passe
Ficando eu sempre quase o mesmo, indo
Para a velhice como um dia entra
No anoitecer.

Ricardo Reis


Fragmentos para uma estética do desalento

Sublime e desesperançada, a iniquidade e a impotência do que sobreavisando a eternidade se deixa subjugar pela quântica misantrópica de um universo irreflectido em si mesmo e no nada que o evola e que, ainda assim, o integra e valquirianamente o cavalga. O anátema enervante e imenso não é impudico, antes submerso e inviamente deslumbrado. Desconhece-se o ser e liminarmente se aflora o ego monstruoso, em ensaios míticos de unicórnios e sílfides que, operática e hereticamente, se confundem em tempestades estivais de fogos-fátuos e de arrependimentos ténues e inverosímeis. Salvem-se almas pútridas e maçãs ardentes em querosene barato, destilado à custa de privações de putativos sentidos amparados em similares conceitos desbragados e rudes. Roçaguem bestas imundas em damascos puídos e tremeluzentes e em canções servo-croatas, sob incomensuráveis concretos de ternura e de torresmos e soarão, em silêncios imundos e inamovíveis, os olhares antitetânicos e perversos dos que se chicoteiam plácida e acusadoramente com borlas de sânscrito e de alfazema pueril.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

De mim no mundo

Calvo turpius est nuhil comto
(Marcial)

Revolvo-me das e nas entranhas de Gaia, telúrica deusa, que venero por mãe – e por isso lhe obedeço – mas é-me impossível, por abjecta, a ideia de translucidar o que meus lúzios podem, em ínfimo nanossegundo, lobrigar.

Infâmia desmembrada e dissoluta, a daqueles que, Homens de pouca ou de ausente ou inanimada fé, vilipendiam a sua própria cognição e tumultuam, em desnorte plúmbeo, a indesejada inteligência, por esgotos de sabedoria avulsa, pretendendo exaurir-se em volutas de aquiescência servil para com os Deuses e para com os pares.

Esbarrondam-se as almas, prenhes de estultícia e de lucidez, em lagares de urze elevada e de espíritos azedos, esparrinham-se os colegiais humores (e amores) em dúbia nortada aceite perene e, rojando intenções benfazejas e insuportáveis, descontroem serenidades perplexas e ubiquidades diluvianas sempre-vivas.

Subjugando-se aos ignaros apelos da subtil e mourejante lascívia, num nepotismo indemne e estrito, embrutecem – condenados sejam, per omnia secula seculorum – e das entranhas permanentes nada ressuma, nada rescende, nem sequer atavios insones ou enxúndias glabras.

Sede malditos, ó ímpios!

Risu inepto res ineptior nulla est
(Catulo)