quinta-feira, 14 de junho de 2007

Liberdade


Ai que prazer
Não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
Como tem tempo, não tem pressa...


Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.


Quanto melhor é quando há bruma
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!


Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.


E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...


Fernando Pessoa - Poesias Inéditas

domingo, 10 de junho de 2007

Telejornal


Telejornal


Informam-me, neste momento: os corcéis cor de laranja

Romperam os cercados e cavalgam os horizontes.

Atenção, estúdio! A locutora desvia a franja,

E sorri: – Também foram avistados alguns bisontes.


Prossegue: – Arco-íris cinzentos – diz, enquanto esbanja

Simpatia – protestam calados, dizem várias fontes.

(Pausa). Prevê-se que esta manifestação abranja

Estepes, serras, selvas, vales, tundras, savanas e montes.


­– Economia: as taxas de juro foram detidas

Por atentado à Esperança que, abalada, se tornou vã.

– E agora o desporto: foram há pouco batidas


As marcas que tinham dado o recorde à campeã

Do desespero, da penúria e das causas perdidas.

Assim vai o nosso mundo! Boa noite! Até amanhã!


sexta-feira, 8 de junho de 2007

Inanição

O vento suprime os insterstícios dos nadas deste mundo. Solidário, submeto-me às sevícias de todos os paraísos e haréns e, sem resistir, deixo-me tomar por volutas prenhes de hedonismo e por sendas intransponíveis.


Guio meus passos por expectativas inesperadas. Sigo. Alguns escolhos. Insisto. Tombo. Ergo-me. Continuo. Difícil, o caminho. Não desisto. Prossigo. Tropegamente, porém. E avanço. E avanço.


Para onde? Porquê? Com que fim?


E se o fim não é o que almejo? E se a recompensa não merece o esforço? E se o desfecho se transforma em desilusão?


Placidamente, sento-me naquela pedra a que chamo irmã, e choro os meus medos.


quarta-feira, 6 de junho de 2007

Pelo sonho é que vamos...


Pelo Sonho é que vamos,
Comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos,
Basta a esperança naquilo
Que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
Com a mesma alegria,
Ao que desconhecemos
E ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

– Partimos. Vamos. Somos.


Sebastião da Gama

domingo, 3 de junho de 2007

Reflexo


Reflexo

Veredas intermitentes de maus sonhos e ocasos
Desembocam em marés de suor e olheiras fundas.
No espelho risca-se o desalento! Negações rotundas,
As que gravo em ónix e outras pedras raras, de olhos rasos.

Índole perversa, maus fígados, tumores, acasos,
Despeito, as glórias, podres credos, intenções segundas,
Íntegros senãos, roucas evasivas, carnes imundas
Infestam-me! Em tempo algum correu sangue nos meus vasos!

E a indolência é tal, tanta a estupefacção, a algidez tamanha
Que retorno ao enxergão. Placentas, colibris e dores
Assaltam-me. É o outro eu, o outro ninguém que ganha.

Reagir? Nunca! O universo e eu somos bons actores
E se, visceralmente, a sofreguidão me acompanha,
Recuso o Caos e a Ordem e procuro os meus arredores.

sábado, 2 de junho de 2007

Daquilo que eu sei...

Duccio di Buoninsegna (c. 1255-1319), Pilatos Lavando as Mãos
Museo dell'Opera del Duomo, Siena


Daquilo que eu sei

Daquilo que eu sei
Nem tudo me deu clareza
Nem tudo foi permitido

Nem tudo me deu certeza

Daquilo que eu sei

Nem tudo foi proibido

Nem tudo me foi possível


Nem tudo foi concebido

Não fechei os olhos

Não tapei os ouvidos

Cheirei, toquei, provei

Ah! Eu usei todos os sentidos


Só não lavei as mãos
E é por isso que eu me sinto

Cada vez mais limpo
Cada vez mais limpo
Cada vez mais...

Ivan Lins